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"O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira" - conferência de abertura do Congresso 2021, por Marilena Chauí

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Marcando o início do Congresso Virtual da UFBA 2021, a filósofa e professora da USP Marilena Chaui proferiu a conferência de abertura do evento, intitulada "O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira". Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) desde 1967, Marilena Chaui recebeu o título de doutora honoris causa pela Universidade de Córdoba (2004) e pela Universidade de Paris 8 (2003). Atualmente ocupa o cargo de professora titular da USP, e é especialista em filosofia política e história da filosofia moderna. 
 

Confira, abaixo, o vídeo e a íntegra da conferência de Marilena Chaui no Congresso Virtual da UFBA 2021:

 

 

 

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O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira

Congresso UFBA  22/02/2021

Marilena Chaui

 

“E daí? Não sou coveiro”. Tomo essa declaração como emblema do que pretendo lhes dizer hoje.

I.

Inimigo da tirania, o filósofo Montaigne escreveu um ensaio intitulado “A covardia é a mãe da crueldade”. A covardia, explica o filósofo, nasce do medo do outro que, por isso, deve ser eliminado de maneira feroz. O covarde é impulsionado pelo temor de que o outro, sendo melhor do que ele e corajoso, possa vence-lo e por isso é preciso extermina-lo, seja fisicamente, seja moralmente, seja politicamente. O cruel, é um mentiroso porque se apresenta com a máscara da coragem quando, na verdade, habitado pelo medo, é movido pela cólera e não há nada pior para uma sociedade do que um governante cruel e colérico, pois não julga segundo a lei e sim segundo seu medo.

Um dos contrapontos mais belos ao ensaio contra a covardia e a crueldade, é aquele sobre a amizade, que Montaigne dedicou à memória de seu amigo, Etienne de La Boétie, que morreu prematuramente e que, como Montaigne, se erguera contra a titânia, escrevendo um texto conhecido como Discurso da servidão voluntária no qual reencontramos a figura do tirano como covarde e cruel.

O Discurso da servidão voluntária, como seu título indica, debruça-se sobre um enigma: como os homens, seres que a Natureza fez livres, usaram a liberdade para destruí-la? Como é possível uma servidão que seja voluntária? De fato, escreve La Boétie, servidão voluntária é alguma coisa que a Natureza, ministra de Deus e boa governante de todas as coisas, se recusou a ter feito. Mais do que isso. Servidão voluntária é algo que a própria linguagem se recusa a nomear, pois essa expressão é uma contradição nos termos, uma vez que vontade livre e servidão são opostas e contrárias: toda vontade é livre e só há servos por coerção ou contra a vontade, coisa de que até os animais dão prova. O enigma, portanto, é duplo: como homens livres se dispuseram livremente a servir e como a servidão pode ser voluntária? 

A força do tirano, explica La Boétie, não está onde imaginamos encontrá-la: nas fortalezas que o cercam e nas armas que o protegem. Pelo contrário, se precisa de fortalezas e armas, se teme a rua e o palácio, é porque é covarde, sente-se ameaçado e precisa exibir signos de força ou atos de crueldade. Fisicamente, um tirano é um homem como outro qualquer  -- tem dois olhos, duas mãos, uma boca, dois pés, dois ouvidos; moralmente, é um covarde, prova disso estando na exibição dos signos de força e nos atos de crueldade. Se assim é, de onde vem seu poder, tão grande que ninguém pensa em dar fim à tirania? Responde La Boétie: sua força  vem da ampliação colossal de seu corpo físico por meio de seu corpo político, que dá lhe mil olhos e mil ouvidos para espionar, mil mãos para espoliar e esganar, mil pés para esmagar e pisotear. O corpo físico do tirano não é ampliado apenas pelo corpo político como corpo de um colosso, também sua alma é ampliada por meio das falsas leis, que lhe permitem distribuir favores e privilégios e seduzir os incautos para que vivam à sua volta para satisfazê-lo a todo instante e a qualquer custo.

Entretanto, é preciso perguntar: quem lhe dá esse corpo político gigantesco, sedutor e malévolo? A resposta é imediata: somos nós quem lhe damos nossos olhos e ouvidos, nossas mãos e nossos pés, nossas bocas, nossos bens e nossos filhos, nossas almas, nossa honra, nosso sangue e nossas vidas para alimentá-lo e aumentar-lhe o poder com que nos destrói. Por isso, diz La Boétie: não é preciso lutar contra ele, basta não lhe dar o que nos pede; se não lhe dermos nossos corpos e nossas almas, ele cairá. Mas, se é tão clara a resposta, maior então é o enigma da servidão voluntária, pois se é coisa fácil derrubar a tirania é preciso indagar por que servimos voluntariamente ao que nos destrói. A resposta de La Boétie é terrível: consentimos em servir porque também esperamos ser servidos. Servimos ao tirano porque somos tiranetes: cada um serve ao tirano porque deseja ser servido pelos demais que lhe estão abaixo; cada um dá os bens e a vida ao tirano porque deseja apossar-se dos bens e das vidas dos que lhe estão abaixo. A servidão é voluntária porque há desejo de servir, há desejo de servir porque há desejo de poder e há desejo de poder porque a tirania habita cada um de nós e institui uma sociedade tirânica, ou seja, a tirania não se encontra no topo do social, mas espalhada por ele e a crueldade se espalha por toda parte. A covardia se manifesta na crueldade física, psicológica, moral e política com que cada um deseja esmagar e exterminar quem recusa a tirania. Não há apenas o tirano, mas uma sociedade tirânica e cruel.

Disso o Brasil é um exemplo perfeito, no qual a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetua a crueldade nas relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. 

Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades, que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que julgam iguais, são de “parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Há, assim, a naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas (consideradas  desigualdades raciais entre superiores e inferiores), religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas visíveis e invisíveis de violência, como o racismo, o machismo, a homofobia.

Nela, as leis são armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensíveis para todos. Para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. Em nossa sociedade, não existem nem a idéia nem a prática da representação política autêntica. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados das oligarquias locais e regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor. É uma sociedade, conseqüentemente, na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública, pois é definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado (isto é, dos interesses econômicos dos dominantes).

Social e economicamente a divisão social entre os grandes e o povo aparece na polarização entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes, consolidando uma estrutura tirânica que bloqueia a instituição e a consolidação de uma sociedade democrática. De fato, fundada na noção de direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal,  seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio firma os alicerces da sociedade tirânica e se ergue como obstáculo à instituição de direitos, definidora da sociedade democrática.

Não nos deve surpreender, portanto, que a crueldade do “E daí? Não sou coveiro” possa ser reproduzida socialmente com a crueldade da chamada “vacina de vento”. Assim, nossa pergunta: porque nada acontece diante da crueldade que assola o país? tem como resposta: porque a tirania é o modo de ser de nossa sociedade.

 

II.

A crueldade também se exprime num tipo preciso de covardia: a da mentira política. Deixemos a palavra a Hannah Arendt:

 

 a negação deliberada da verdade dos fatos – isto é, a capacidade de mentir – e a faculdade de mudar os fatos – isto é, a capacidade de agir – estão interligadas”, e, prossegue ela, “a veracidade dos fatos nunca é forçosamente verdadeira. Os historiadores sabem como é vulnerável a textura dos fatos na qual passamos nossa vida cotidiana e está sempre em perigo de ser perfurada por mentiras comuns ou ser estraçalhada pela mentira organizada de grupos, classes ou nações, de ser negada e distorcida, muitas vezes encoberta cuidadosamente por camadas de falsidade, ou ser simplesmente deixada cair no esquecimento. Os fatos necessitam de testemunho para serem lembrados e de testemunhas de confiança para se estabelecerem para que possam encontrar um abrigo seguro no campo dos assuntos humanos ... é esta fragilidade que torna o embuste tão fácil e tão tentador (...) O mentiroso tem a grande vantagem de saber de antemão o que a platéia espera ouvir. Ele prepara sua história com muito cuidado para consumo público, de modo a torna-la crível, já que a realidade tem o desconcertante hábito de nos defrontar com o inesperado para o qual não estamos preparados.[1]

 

A mentira deliberada consiste naquilo que o filósofo Theodor Adorno chamou de cinismo.

O cinismo não é apenas a deliberação de mentir, mas a de tornar irrelevante a distinção entre o verdadeiro e o falso. Nada mais cínico, por exemplo, do que a afirmação governamental de que os indígenas são responsáveis pelo desmatamento de nossas florestas e destruidores do meio ambiente.

Ora a distinção entre o verdadeiro e o falso é a marca essencial do pensamento e por isso podemos dizer que a crueldade se manifesta como ódio ao pensamento. Não por acaso, o primeiro exemplo escolhido por Montaigne para ilustrar o laço entre covardia e crueldade é o de Sócrates, que, em sua incansável busca da verdade e da justiça, enfrentou com coragem um tribunal que dele tinha medo e por isso o condenou à morte.

O ódio ao pensamento é o medo de por em questão o senso-comum, as idéias pré-estabelecidas. Por que ódio e medo se juntam aqui? Por que o pensamento, ao questionar o senso-comum, tem força transformadora: ao pensar, o pensamento faz pensar, dá o que pensar e abala os fundamentos do senso-comum. O ódio ao pensamento aparece no ódio à universidade pública.

 

III.

Desde seu surgimento (no século XIII europeu), a universidade sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão. Por isso mesmo, a universidade européia tornou-se inseparável das idéias de formação, reflexão, criação e crítica. Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da educação e da cultura como direitos, a universidade tornou-se também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa idéia, seja para opor-se a ela, a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como idéia reguladora.

A universidade se dedica à formação e à pesquisa.

O que significa formação? Antes de mais nada, como a própria palavra indica, uma relação com o tempo: é introduzir alguém ao passado de sua cultura (no sentido antropológico do termo, isto é, como ordem simbólica), é despertar alguém para as questões que esse passado engendra para o presente, e é estimular a passagem do instituído ao instituinte. O que Merleau-Ponty diz sobre a obra de arte nos ajuda aqui: a obra de arte recolhe o passado imemorial contido na percepção, interroga a percepção presente e busca ultrapassar a situação dada oferecendo-lhe um sentido novo que não poderia vir à existência sem a própria obra. Da mesma maneira, a obra de pensamento só é fecunda quando pensa e diz o que sem ela não poderia ser pensado nem dito, e sobretudo quando, por seu próprio excesso, nos dá a pensar e a dizer, criando em seu próprio interior uma posteridade que irá superá-la. Ao instituir o novo sobre o que estava sedimentado na cultura, a obra de arte e a de pensamento reabrem o tempo e formam o futuro. Podemos dizer que há formação quando há obra de pensamento e que há obra de pensamento quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como questão, pergunta, problema, dificuldade. A formação recolhe o passado – que foi pensado, dito, feito -, o compreende em seu presente e no nosso; interroga o presente – o que há para ser pensado, dito e feito; e abre o futuro como porvir – o que nossa interrogação deixa para os que virão depois de nós quando se puserem a pensar, dizer e fazer.

A formação é o que permite o nascimento e o desenvolvimento da pesquisa. O que define a define a pesquisa, quais suas marcas mais importantes. 1. a inovação: seja pelo tema, seja pela metodologia, seja pela descoberta de dificuldades novas, seja por levar a uma reformulação do saber anterior sobre a questão; 2. a durabilidade: a pesquisa não é servil a modismos e seu sentido não termina quando a moda acadêmica acabar porque não nasceu de uma moda; 3. a idéia de obra: a pesquisa não é um fragmento isolado de idéias que não terão seqüência, mas cria passos para trabalhos seguintes, do próprio pesquisador ou de outros, sejam seus orientandos, sejam os participantes de mesmo grupo ou setor de pesquisa; existe obra quando há continuidade de preocupações e investigações, quando há retomada do trabalho de alguém por um outro, e quando se forma uma tradição de pensamento na área; 4. dar a pensar: a pesquisa faz que novas questões conexas, paralelas ou do mesmo campo possam ser pensadas, mesmo que não tenham sido trabalhadas pelo próprio pesquisador; ou que questões já existentes, conexas, paralelas ou do mesmo campo possam ser percebidas de maneira diferente, suscitando um novo trabalho de pensamento por parte de outros pesquisadores; 5. significado social, político ou econômico: a pesquisa alcança receptores extra-acadêmicos para os quais o trabalho passa a ser referência de ação, seja porque leva à idéia de pesquisa aplicada, a ser feita por outros agentes, seja porque seus resultados são percebidos como direta ou indiretamente aplicáveis em diferentes tipos de ação; 6. autonomia: a pesquisa suscita efeitos para além do que pensara ou previra o pesquisador, mas o essencial é que tenha nascido, de exigências próprias e internas ao pesquisador e ao seu campo de atividades, da necessidade intelectual e científica de pensar sobre um determinado problema, e não por determinação externa ao pesquisador (ainda que tenham sido outros sujeitos acadêmicos, sociais, políticos ou econômicos que possam ter despertado no pesquisador a necessidade e o interesse da pesquisa, esta só consegue tornar-se excelente, se nascida de uma exigência interna ao pensamento e à ação do próprio pesquisador); 7. articulação de duas lógicas diferentes, a lógica acadêmica e a lógica histórica (social, econômica, política): a pesquisa inovadora, duradoura, autônoma, que produz uma obra e uma tradição de pensamento e que suscita efeitos na ação de outros sujeitos é aquela que busca responder às questões colocadas pela experiência histórica e para as quais a experiência, como experiência, não possui respostas; em outras palavras, a qualidade de uma pesquisa se mede pela capacidade de enfrentar os problemas científicos, humanísticos e filosóficos postos pelas dificuldades da experiência de seu próprio tempo; quanto mais uma pesquisa é reflexão, investigação e resposta ao seu tempo, menos perecível e mais significativa ela é; 8. articulação entre o universal e o particular: a pesquisa excelente é aquela que, tratando de algo particular, o faz de tal maneira que seu alcance, seu sentido e seus efeitos tendam a ser universalizáveis; quanto menos genérica e quanto mais particular, maior possibilidade de possuir aspectos ou dimensões universais (por isso, e não para contagem de pontos, é que poderá vir a ser publicada e conhecida internacionalmente, quando o tempo dessa publicação surgir).

Como instituição social, a universidade não pode evitar tensões entre sua dimensão acadêmica e sua dimensão sócio-política. A primeira tensão surge quando levamos em conta a diferença da temporalidade que rege a docência e a pesquisa e a que rege a política. A segunda tensão, quando levamos em consideração a alternância de governos, própria da democracia.

Examinemos a primeira tensão. O tempo da política é o aqui e o agora. O planejamento político, mesmo quando distingue o curto, o médio e o longo prazos, é feito com um calendário completamente diferente do planejamento científico, pois o tempo da ação e o tempo do pensamento são completamente diferentes. Além disso, a ação política se realiza como tomada de posição e decisão acerca de conflitos, demandas, interesses, privilégios e direitos, devendo realizar-se como resposta à pluralidade de exigências sociais e econômicas simultâneas. A ação política democrática é, ao mesmo tempo, heterônoma e autônoma. Heterônoma, pois a origem da ação encontra-se fora dela, nos grupos e classes sociais que definem suas carências, necessidades, interesses, direitos e opções. Autônoma, pois a origem da decisão política encontra-se nos grupos que detêm o poder e que avaliam, segundo seus próprios critérios, a deliberação e a decisão. De todo modo, porém, a velocidade, a presteza da resposta política e o seu impacto simbólico são fundamentais, e o seu sentido só aparecerá muito tempo depois da ação realizada. Ao contrário, o tempo da docência e da pesquisa segue um outro padrão e uma outra lógica. Os anos de ensino e formação para a transmissão dos conhecimentos, a invenção de novas práticas de ensino, as alterações curriculares exigidas pelas conseqüências e inovações das pesquisas da área que está sendo ensinada e aprendida, as condições materiais de trabalho, bibliotecas e laboratórios exigem que o tempo da docência se constitua segundo sua lógica e sua necessidade internas específicas. Do lado da pesquisa, a preparação dos pesquisadores, a coleta de dados, as decisões metodológicas, as experiências e verificações, os ensaios e erros, a necessidade de refazer percursos já realizados, o retorno ao ponto zero, a recuperação de pesquisas anteriores nas novas, a mudança de paradigmas de pensamento, a descoberta de novos conceitos feitos em outros campos do saber (não diretamente vinculados ao campo pesquisado, mas com conseqüências diretas ou indiretas sobre o andamento e as conclusões de pesquisa), a exigência lógica de interrupções periódicas, a necessidade de discutir os passos efetuados e controlá-los, enfim, tudo aquilo que caracteriza a pesquisa científica - sem falarmos aqui nas condições materiais de sua possibilidade, como a inexistência de recursos para prosseguir numa linha que deverá ser abandonada por outra para a qual existam recursos materiais e humanos além de saber acumulado - faz que o tempo científico e o tempo político sigam lógicas diferentes e padrões de ação diferentes. Assim como seria suicídio político pretender agir somente mediante idéias claras, distintas e absolutamente precisas, rigorosas e logicamente verdadeiras, também seria suicídio teórico pretender submeter o tempo da pesquisa ao da velocidade e do imediatismo da ação política. A política parece não ter tempo para adiantar-se aos resultados do seu próprio trabalho. É por isso, aliás, que a política não é uma ciência, embora exista uma ciência política que não é política propriamente dita (é uma ciência sobre a política e não da política). Essa diferença das temporalidades leva a supor que a dimensão sócio-política da universidade precisa subordinar-se à sua dimensão acadêmica, ou seja, a ação política só pode apropriar-se da pesquisa científica depois que esta estiver consolidada e não pode impor a ela outro ritmo que não o do pensamento. Isso leva a duas conseqüências. Em primeiro lugar, a de que os objetivos de uma política podem auxiliar materialmente o tempo da pesquisa, tornando-o mais rápido, graças a condições materiais da sua realização; em segundo, que a pesquisa científica pode orientar projetos políticos, na medida em que pode oferecer elementos de elucidação da própria ação política.

A segunda tensão entre as duas dimensões decorre, como  dissemos, da natureza da política democrática, fundada na alternância periódica dos ocupantes dos governos. Essa alternância, essencial à democracia, significa que, periodicamente, a sociedade pode decidir seja pela continuidade seja pela descontinuidade das políticas, isto é, de um projeto político ou de um conjunto de políticas públicas. A dimensão humanística e científica da universidade, porém, só pode realizar-se se houver continuidade dos projetos e programas de formação e pesquisa. A tensão entre as duas dimensões pode ser superada na medida em que a universidade se engaje em políticas de longo prazo que não estejam submetidas ao tempo descontínuo da política estatal.

 

IV.

Inspirando-me em Claude Lefort, quero concluir falando de nosso trabalho, isto é, da obra de pensamento como trabalho.

Imersa numa história, a obra de pensamento inaugura uma nova história, abre um campo de pensamento inédito graças às criticas das representações instituídas, que obscurecem o presente e o porvir. Mas esse ato inaugural tem como solo um estado radical de não-saber. É como ausência de saber e de ação que o presente suscita a obra, cujo trabalho institui saber e ação. Com efeito, afirmar que a obra de pensamento é um trabalho intelectual significa que há uma matéria a ser transformada pela reflexão. Essa matéria é a experiência imediata e o trabalho da obra consiste em desfazer a suposta positividade dessa matéria, descortinando as questões que ela suscita e é incapaz de responder. O trabalho da obra começa quando revela o sono em que está mergulhada a experiência imediata, quando a desmente e a desmistifica, obrigando-a a pensar-se e, ao fazê-lo, conduzi-la a reconhecer-se como necessária e ilusória. Interpretar o presente é interrogá-lo para desfazer sua aparência, isto é, sua positividade e, com ela, a positividade atribuída tanto à imagem fixa do passado quanto um cálculo apaziguador do futuro. Assim, a articulação entre saber e não-saber, que inaugura a obra como trabalho da reflexão, inaugura também a possibilidade de interrogar um outro trabalho, nascido do primeiro, qual seja, o da transformação do presente. Trabalho da obra: maneira de alcançar a obra em seu ponto mais obscuro nas articulações entre teoria e prática, nas dobras da historicidade.

Claude Lefort retoma uma expressão cunhada pelo filósofo napolitano, Vico, a “mente heróica”, retomada por Michelêt como “heroísmo do pensamento. Essas expressões surgem

 

para celebrar o risco de uma busca sem modelos, liberta da autoridade do saber estabelecido, muito apropriada para reivindicar o desejo desmedido de pensar para além da separação das disciplinas do conhecimento, em busca da verdade (...) para “criar, fazer surgir, pelo exercício de um direito vertiginoso do pensamento, da palavra, a obra em que advém o sentido” (...) “quando se assume o risco interminável do pensamento, da palavra ou da ação”. [2]

 

Exercício e dignidade heróica do pensamento: este é nosso lugar na luta contra a covardia, a crueldade, a mentira e o cinismo.

 



[1] Hannah Arendt Crises  da república. São Paulo, Perspectiva, 1973, p. 9

[2] C.Lefort  Écrire à l’epreuve du polítique. Calman-Lévy, Paris, 1992, p. 339.