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Residência artística do Goethe aproxima a UFBA de artistas do “sul global”

Programa Vila Sul teve início no final de 2016

Em julho, a palestra de um arquiteto do Egito – Mohamed Elshahed – sobre “Modernismo Egípcio” movimentou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.

Dias antes, o Centro de Estudos Afro-orientais da UFBA (Ceao) exibira um documentário indiano sobre o massacre de mais de 2 mil muçulmanos na Índia, em 1983, com direito a debate com a cineasta autora do filme, Subasri Krishnan.

Dias depois, um duo musical formado por um contrabaixista italiano e uma artista sonora teuto-brasileira – Klaus Janek e Milena Kipfmüller – realizaria uma “caminhada sonora”, performática e interativa com o público, no IHACLab-i, no Campus de Ondina.

Alguns meses atrás, um coreógrafo norte-americano e três artistas baianos – Adam Kinner, Ana Brandão, Nerfetiti Charlene Altan e Thiago Cohen – ocuparam o prédio em construção da Escola de Dança com uma performance de dança contemporânea.

E tem mais por vir: em outubro, uma antropóloga e curadora de arte alemã que fez o doutorado em Angola – Nadine Seigert – dará um curso no Ceao sobre o desenrolar da cena de arte africana ao longo do século 20.

Em comum entre todas essas pessoas, eventos e espetáculos está o fato de que os intelectuais e artistas estrangeiros convidados são participantes do programa Vila Sul, uma residência artística promovida pelo Instituto Goethe da Bahia, no âmbito da política da diplomacia alemã para a cultura, que começou a acontecer oficialmente no final de 2016, e da qual a UFBA tem sido uma parceira fundamental.

A cada dois meses, um grupo de quatro residentes de várias partes do mundo, selecionados por um júri que conta com gente da UFBA – o professor do departamento de antropologia Livio Sansone, atual coordenador do Pós-Afro, o programa de pós-graduação do Ceao -, chega para passar um período de dois meses na Bahia, com direito a estadia em confortáveis apartamentos recém-reformados no Goethe, no Corredor da Vitória. No total, o programa traz 20 residentes por ano (veja a lista completa aqui), que recebem passagens, hospedagem e uma ajuda de custo para as despesas em Salvador.

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Duo formado por contrabaixista italiano e artista sonora alemã-brasileira conduziu “caminhada sonora” no Campus de Ondina. Para acompanhar, bastava ligar o rádio do celular

Em troca, liberdade total: nada além da dura e merecida missão de “ficar de boa”, uma vez que eles não têm nenhuma obrigação de mostrar qualquer tipo de resultado. Mas talvez seja justamente essa liberdade o fator que mais os motive a interagir ao máximo com artistas e intelectuais, professores e estudantes locais – e é dessa interação que têm surgido eventos como os descritos acima – e a avançar na concepção e/ou produção de vídeos, livros, pintura, performance e o que mais a imaginação permitir.

O Goethe promove uma agenda para os residentes que inclui visitas a bairros como Ribeira, Santo Antônio e Liberdade e idas ao Recôncavo Baiano, e a possibilidade de conhecer terreiros de candomblé e visitar projetos socioculturais, como o “Projeto Lage”, que promove workshops e ateliês artísticos em Plataforma. O objetivo de fundo, explica o diretor do Instituto Goethe da Bahia, Manfred Stoffl, é romper com a visão “eurocêntrica” e atentar para questões de raça e gênero e para as “semelhanças e diferenças” em relação aos locais de origem dos residentes. De resto, o trânsito pela cidade é livre.

Essa invasão de gente estrangeira fazendo e aprendendo novas formas de fazer arte em Salvador, influenciando e sendo influenciada pela Bahia, talvez lembre um pouco a cena do avant-garde baiano dos anos 1950 e 60, quando intelectuais e artistas como a arquiteta italiana Lina Bo Bardi, a dançarina polonesa Yanka Rudzka e os músicos suíços Ernst Widmer e Walter Smetak, entre outros, trouxeram, através da UFBA, a “modernidade europeia” para dialogar com a cultura baiana, rompendo com o tradicionalismo cultural elitista então hegemônico e lançando bases para movimentos artísticos posteriores, como, por exemplo, a Tropicália.

Lembra um pouco, mas só um pouco mesmo. Primeiro, porque as modernidades que interessam hoje são outras: saiu do foco a centralidade metropolitana europeia – que, no passado, se propusera a “fecundar” a Bahia com suas “novas ideias” – , para dar lugar às diversas modernidades do chamado “sul global” (América Latina, África e Ásia), numa proposta de diálogo artístico horizontal, que se trava diretamente entre os países antes tidos como periféricos no tabuleiro da cultura, como Brasil e Angola, Venezuela e Índia, Colômbia e Egito, entre outros exemplos possíveis.

Palestra do arquiteto Mohamed Elshahed – sobre “Modernismo Egípcio” movimentou a Faculdade de Arquitetura

Segundo, porque nem todos os artistas e intelectuais convidados são europeus – a maior parte deles nasceu ou tem relação com países do chamado “sul global”, seja pela origem familiar, seja pela trajetória de pesquisa, ou, quando nada, vêm com o interesse em se deixar influenciar pelo que encontram na Bahia. Terceiro, porque o período de estadia deles é muito menor do que o dos artistas do passado, que residiram por períodos longos, às vezes pelo resto da vida, na Bahia.

A estadia é curta, mas a presença desses artistas tem resultado em pontes com professores e estudantes da UFBA – o que, direta ou indiretamente, contribui para a internacionalização da Universidade. Embora não haja um convênio formal com a UFBA, o intercâmbio com a comunidade universitária acaba sendo o caminho natural da maior parte dos participantes do Vila Sul. “Pensando bem, talvez, sem o apoio da UFBA, muito do que foi produzido não teria sido possível”, avalia o diretor do Goethe na Bahia, Manfred Stoffl, que faz questão de elencar uma série de nomes de professores da UFBA interlocutores do Goethe: Alejandra Hernández Muñoz e Ines Linke, da Escola de Belas Artes; Karla Brunet, do IHAC; Viga Gordinho e Ricardo Barreto Biriba, da Escola de Belas Artes; Carmen Paternostro e Rita Aquino, da Escola de Dança;  Marcio Correia Campos e José Carlos Huapaya Espinoza, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo; Heinz Schwebel, da Escola de Música, além do professor Livio Sansone.

Membro do corpo de selecionadores dos residentes, o professor Sansone observa que a aproximação com projetos como o Vila Sul torna-se algo mais significativo ainda no atual contexto de restrição de investimentos nas universidades por parte do governo, porque, afinal, contribui para manter a universidade em contato com a comunidade internacional.

Curso e exposição

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Nadine Seigert, da Universidade de Bayreuth, em seu quarto no Goehe: em outubro ela dará curso no Ceao sobre a cena de arte na África

Foi a interlocução acadêmica entre o professor Livio Sansone e os alemães Ute Fendler (professora de literatura) e Eberhard Rothfuss (professor de geografia) da Universidade de Bayreuth, na Alemanha, que abriu caminho para que a curadora de arte e pesquisadora Nadine Seigert viesse parar em Salvador. Diretora do museu e centro cultural Iwalewahaus, ligado à Universidade de Bayreuth, Nadine, que coordena ali um programa de residência artística semelhante ao Vila Sul, chegou em Salvador há uma semana para experimentar o outro lado do balcão: ela é uma das quatro novas residentes, que ficarão na Bahia até o início de outubro.

Dias antes de partir, ela dará um minicurso no Ceao, entre os dias 02 e 06/10, intitulado “Um panorama da arte moderna e contemporânea na África”, que já entrou na programação oficial do Pós-Afro/Ceao. Antropóloga com doutorado em estudos de arte em Angola, com pesquisa sobre o que chamou de “as três gerações” da cena de arte da capital Luanda (a utopia pré-independência; a distopia da guerra civil, pós 1975; e a geração do ‘boom econômico’ do pós-guerra, a partir de 2002), ela pretende ampliar a abordagem no curso, abrangendo “várias ideias de modernismo” em diversos países africanos ao longo do século 20, relacionando-as com os respectivos contextos históricos, políticos, econômicos e sociais.

“No curso, espero dar uma ideia geral sobre a prática artística em África, mobilizando e, ao mesmo tempo, problematizando conceitos como ‘moderno’ e ‘contemporâneo’, que talvez precisem ser substituídos por outros, como ‘identidade’ e ‘modernismos locais'”, sintetiza. No programa, que ainda está sendo finalizado, devem constar biografias de artistas representativas do que significou “ser um artista africano” ao longo do século 20, em face dos impactos do colonialismo e das lutas de independência, até chegar à relação com o mercado de arte atual, que traz novos condicionamentos e potencialidades expressivas.

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O Goethe-Institut reformou quatro apartamentos e esta área comum, com cozinha e sala de estar, para receber os residentes

Nadine também montará em Salvador a exposição “Future Africa Visions in Time”, da qual é curadora, que, a partir de 15 de setembro, acontecerá simultaneamente em Salvador e em Johanesburgo (África do Sul). A mostra reúne vídeos de Kitsu Lynn Lelliot, da África do Sul, Kiluanji Kia Henda, de Angola, e provavelmente trabalhos de mais dois realizadores brasileiros, cujos nomes ainda não estão confirmados.

Nadine conta que o filme da cineasta sulafricana é uma ficção criada a partir da história real de uma mulher africana escravizada em Bayreuth entre os séculos 17 e 18; já o do realizador angolano é um “vídeo poético” sobre a “distopia portuguesa” e a “utopia africana”, que se passa em Luanda em 1975, no momento em que Angola deixa de ser colônia de Portugal, e os portugueses deixam o país. Mais detalhes sobre a exposição, Nadine deixa para dar depois – afinal, nesses primeiros dias, ela só quer mesmo é um merecido descanso do ano duro de trabalho na Alemanha.